O homem que tinha uma árvore na cabeça

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Era uma vez um homem que tinha uma árvore na cabeça. No princípio era apenas um arbusto com folhas esguias e acastanhadas. Depois os ramos começaram a engrossar e as folhas a ganhar largura e uma cor mais viçosa.

Era uma verdadeira árvore, alta, pujante e bonita. O homem, quando o arbusto começou a ganhar forma no meio da sua cabeça, ficou assustado. Quem é que não ficava? Depois foi-se habituando. Quando o arbusto se transformou em árvore, passou a senti-la como coisa sua, como uma parte de si mesmo. Apenas o incomodava o peso que tinham o tronco e os ramos, obrigando-o, por vezes, a vergar o pescoço em direcção à terra.

O homem não era alto nem forte. A sua pele era pálida e faltava uma luz que iluminasse os seus olhos e tirasse deles a tristeza que os tornava mortiços e graves. Era um homem de muito poucas falas e, talvez por isso,  poucas pessoas sabiam o seu nome.  Chamava–se Tenório, mas, como tinha uma árvore na cabeça, passaram a tratá-lo por outro nome, mais engraçado e fácil de decorar: Arbóreo.

O homem não gostava do nome, mas não tinha possibilidade de escolher outro. Fora inventado pela maioria das pessoas que o conheciam, que com ele se cruzavam na rua, que o viam debruçado à janela, que o confundiam com a mancha verde das florestas e dos jardins. Que havia ele de fazer? Chamavam-lhe Arbóreo e era por esse nome, e só por ele, que ia ficar conhecido.

Um dia Arbóreo, quando a Primavera estava à porta, gostou do cheiro adocicado que lhe entrava pelas narinas e pensou: de onde virá este cheiro tão doce, tão bom? Não encontrou resposta. Aquele cheiro abria-lhe o apetite e dava-lhe um grande bem-estar. De onde viria ele?

Levou a mão até aos ramos da árvore que tinha na cabeça e sentiu umas formas macias e arredondadas. Como na terra onde vivia existiam poucos espelhos, correu até ao rio e, esperando que as águas estivessem calmas, viu nelas a sua imagem refletida. Então exclamou: «São frutos!»

Eram realmente frutos, embora não fossem nem pêssegos, nem peras, nem maçãs. Eram redondos e sumarentos. Eram diferentes de todos os que até então tinha cheirado ou comido. Que frutos seriam?

Enquanto trincava uns e arrancava outros com cuidado para os guardar num pequeno saco de pano que levava na mão, pensou: «É engraçado, têm o mesmo gosto de certas ideias que me passam pela cabeça». E não estava longe da verdade. É que, se os frutos nasciam da árvore que tinha na cabeça, era natural que tivessem um paladar parecido com o de certas ideias.

Uma das coisas que Arbóreo gostava de fazer era dormir a sesta debaixo das árvores de copas largas que havia na cidade onde morava. Agora já não precisava de as procurar. Podia dormir à sua própria sombra. Não era uma sombra grande, mas dava perfeitamente para se refrescar e para ouvir em sossego o chilrear dos pássaros.

Os pássaros. Sim, os pássaros. Gostavam de vir poisar nos seus ramos, buscar o abrigo das suas folhas largas e verdes, encontrar um sítio descansado para passarem a noite.

Arbóreo sabia de cor o canto dos pássaros e percebia neles uma fala que era diferente da que usavam as pessoas, mas que servia para se entenderem.

Eram bonitos os pássaros. Uns eram pintassilgos, outros melros, outros ainda tentilhões ou pardais. Todos tinham as suas rotas, os seus hábitos, os seus modos de aproveitar os embalos do vento.

Arbóreo gostava de ser acordado pelo chilreio da passarada e pelo riso das crianças que atravessavam os grandes terreiros da cidade a brincar a tudo aquilo que lhes dava na cabeça, inventando guerras, perseguições e casamentos, duelos e julgamentos.

– Vamos roubar um dos frutos da cabeça de Arbóreo – gritou um miúdo sardento, enquanto ele dormia debaixo do cogumelo da sua copa larga.

Logo os outros, que com ele andavam em fingimentos de guerra e de paz, se apressaram a fazer coro:

– Vamos deixá-lo careca de frutos!

Foi com o som áspero desta frase que Arbóreo acordou, interrogando os seus visitantes:

– Que vem a ser isso de careca de frutos?

– Se quem não tem cabelos na cabeça é careca – respondeu um deles. – Quem deixa de ter frutos fica careca de frutos.

Os governantes da cidade não gostavam que Arbóreo tivesse uma árvore na cabeça, porque era o tipo de liberdades que não costumavam conceder aos seus cidadãos. Para se ter uma árvore na cabeça, um castelo no nariz ou um diamante num olho, era preciso ter uma autorização especial. Arbóreo não tinha. Por isso recebeu a visita noturna de um grupo de soldados que o levaram até ao palácio do governador para ser interrogado.

– Como foi que te apareceu uma árvore na cabeça? – inquiriu o chefe dos guardas.

– Isso gostava eu de saber – respondeu Arbóreo, com a voz entaramelada pela aflição em que estava. É que nunca se tinha visto em apuros daqueles, à frente de homens fardados e carrancudos, a ter de responder a perguntas para as quais não encontrava resposta. E tudo isso porque tinha uma árvore na cabeça.

– Diz-se que à tua sombra – acusou o chefe dos guardas – costumam reunir-se os que conspiram contra os nossos governantes.

– Como – perguntou Arbóreo, espantado – se a sombra que a minha árvore dá é tão pequenina que só chega para mim?

– Os conspiradores – respondeu o inquiridor – também não são muito grandes.

– Mas – insistiu Arbóreo – eu garanto que nunca os vi debaixo da minha sombra e que, mesmo que os tivesse visto, dificilmente teria percebido o que diziam.

Registadas todas estas palavras num grande livro de capa negra, reuniram-se os guardas para decidirem que destino haviam de dar a Arbóreo, acabando por libertá-lo ao fim de algumas horas.

– Acreditamos que não tens grandes culpas – disseram-lhe – mas, ainda assim, ficarás sob vigilância, não vás envolver-te nalguma conspiração.

Quando Arbóreo deixou o palácio do governador, estava contente por se encontrar de novo em liberdade, mas, ao mesmo tempo, sentia tristeza por ter estado preso sem razão. Talvez por isso, o sol que envolvia a cidade, lhe pareceu pálido e envergonhado, num trapézio de nuvens pequeninas, lá em cima no meio do grande azul da tarde.

*

A cidade onde Arbóreo vivia chamava-se Praga e era uma das cidades mais belas do seu tempo, com monumentos altos e limpos, com pontes arqueadas sobre as águas do rio e com parques e bairros cheios de cor e de alegria. Ali chegou, por esses dias, um estudioso dos astros chamado Kepler, que vinha com a família de uma outra cidade chamada Graz, onde tinha havido grande agitação provocada pela perseguição que o arquiduque católico moveu contra os protestantes. Guerras de religião.

Entre as escolas mandadas encerrar encontrava-se aquela onde Kepler era professor, diga-se, com muitos conhecimentos sobre muitas matérias, mas bastante distraído e pouco organizado na maneira de explicar as suas ideias.

Com o astrónomo viajavam a mulher, pessoa doente e infeliz, e uma enteada. Haveres tinham poucos, o que fazia com que não pudessem dispor de criados. De resto, como a saída de Graz tinha sido feita à pressa, transportaram para Praga apenas algumas mudas de roupa e duas ou três peças de mobiliário. Nada mais.

Em Praga, Kepler encontrou boas condições para trabalhar e para fazer os seus estudos e investigações. Era um homem de poucas falas, com ar sonhador e uma maneira estranha de olhar o céu e os corpos celestes. No fundo, era esse o mundo que ele compreendia.

E houve um dia em que o seu caminho se cruzou com o de Arbóreo. Foi assim: Kepler, aborrecido com o mau ambiente que tinha em casa, provocado pela incompreensão da mulher em relação ao seu trabalho de astrónomo, gostava de dar longos passeios pelos jardins da cidade Atravessava a Ponte Carlos, percorria com passo lento a íngreme Rua dos Alquimistas, e depois ia sentar-se à sombra de uma árvore a fazer mentalmente os seus cálculos e difíceis operações matemáticas.

Distraído como era, não reparou certa vez que o tronco da árvore que tinha escolhido era um corpo de homem e que esse homem era Arbóreo. Por isso, foi com enorme surpresa que ouviu sair do meio dos ramos e das folhas largas uma voz que dizia:

– Não se assuste que eu não sou uma árvore igual às outras. Sou um homem-árvore.

Kepler imaginou que alguém lhe estava a pregar uma partida. Mas quem seria, se em Praga praticamente não conhecia ninguém?

– Vamos deixar-nos de brincadeiras – sugeriu ele – que eu estou com pouca disposição para entrar nelas.

– Não se trata de uma brincadeira – esclareceu Arbóreo. – Eu tenho uma árvore na cabeça e talvez o senhor, que tem ar de ser pessoa de ciência, me possa ajudar a decifrar este mistério.

Kepler olhou com atenção e verificou que não se tratava, na realidade, de uma partida. Era mesmo um homem com uma árvore na cabeça. E era uma árvore de ramos grossos e compridos, com bonitas folhas de um verde acastanhado. Como se poderia explicar um fenómeno tão estranho?

– Gostava de o ajudar – respondeu Kepler – mas confesso que nunca os meus olhos observaram um caso assim. Nem disponho de meios nem de conhecimentos para encontrar uma resposta que o satisfaça, até porque sou um homem de ciência e aos homens de ciência só as respostas bem fundamentadas podem servir.

– Mas eu – lamentou-se Arbóreo – vivo numa grande infelicidade. Quando a árvore começou a crescer não dei grande importância ao caso. Pensei até que ser diferente, numa cidade como esta, me podia trazer vantagens de vária ordem. Mas depois vi que me tinha enganado. Comecei a dar nas vistas e a tornar-me suspeito. Hoje não tenho casa onde possa morar e os meus únicos amigos são os pássaros, algumas crianças e as estrelas que iluminam a noite imensa.

Ao ouvir da boca de Arbóreo a palavra “estrelas”, Kepler sentiu que o coração lhe batia mais depressa dentro do peito. Era para ele uma palavra mágica, carregada de sentidos. Sendo ele astrónomo, ou seja um cientista dos astros e dos grandes mistérios do Universo, um homem deslumbrado com o brilho pálido das galáxias perdidas na noite, não podia ficar indiferente àquela palavra.

– És amigo das estrelas? – perguntou.

– Claro que sou – respondeu Arbóreo com convicção – e tanto assim é que, quando me sinto mais sozinho e desconsolado, são elas que vêm dar-me novo ânimo e apontar-me novos caminhos.

– Isso quer dizer – concluiu Kepler – que temos em comum a paixão pelas estrelas e, se calhar, também pelos planetas.

– Também pelos planetas – confirmou Arbóreo.

– Sendo assim – adiantou o astrónomo – talvez eu possa ajudar-te, ou pelo menos, tentar ajudar-te com o pouco que sei.

O diálogo tornara-se de tal maneira cordial que, sem darem por isso, tinham começado a tratar-se por tu, que é o tratamento familiar que os amigos dão uns aos outros. Tinham-se, portanto, tornado amigos.

Nessa noite, num recanto abrigado do jardim, Arbóreo dormiu descansado e sonhou com estrelas, com muitas estrelas, e com um amigo que cavalgava pelo meio delas à garupa de um cometa extraordinariamente veloz. O amigo era Kepler.

Por sua vez, Kepler tinha um outro amigo. Era um homem rico, solitário e estranho. Era dinamarquês e vivia exilado na corte do imperado católico Rudolfo II. Chamava-se Tycho Brahe e estava mais avançando que Kepler no estudo dos segredos mais secretos do Universo.

Quando voltou a encontrar-se com Arbóreo, Kepler contou-lhe:

– Escrevi ao meu amigo Tycho e expliquei-lhe o teu caso. Se somos capazes de decifrar mistérios dos planetas e das estrelas, também havemos de descobrir por que razão pode um homem viver com uma árvore na cabeça.

Arbóreo, que não estava interessado em que a fama do seu estranho caso desse a volta ao mundo, perguntou-lhe quem era esse tal Tycho. E Kepler explicou-lhe:

– É um cientista. Um cientista como eu… bem, como eu não, porque tem um nariz de ouro.

– Um nariz de ouro! – exclamou o homem-árvore.

– Sim, um nariz de ouro. Explico-te porquê. Ele, quando era jovem, era brigão e atrevido e, num duelo que travou, o adversário, com um golpe certeiro, arrancou-lhe o nariz. Imaginas o que é viver sem nariz? Aí ele, como era muito rico, decidiu arranjar um nariz postiço e mandou que o fizessem em ouro. É um sinal da sua grande fortuna e da sua diferença em relação aos outros homens.

– Que duelo mais estúpido! – comentou Arbóreo, indignado.

– E queres saber qual a causa do duelo? É que disputavam ambos o título de melhor matemático do reino.

– Mas então ele é astrónomo ou matemático?

– É matemático, como eu, porque o estudo dos astros ainda não é considerado como uma ciência e sim como a soma de conhecimentos de uns adivinhos que leem no céu o destino dos outros. e não há nada mais errado do que isso. A astronomia é uma ciência e é assim que a queremos ver tratada.

Kepler não chegou a receber de Tycho Brahe uma resposta satisfatória sobre o caso de Arbóreo porque, entretanto, Tycho adoeceu gravemente, morrendo ao fim de poucas semanas. Sofria de uma infeção grave e não seguiu os conselhos dos médicos.

Kepler sentiu muito a sua perda, que só foi aliviada por ter recebido em herança os cadernos com as notas das suas invenções de mais de trinta anos e os instrumentos óticos com que observava os planetas e os astros.

Foi com base nessas notas, conforme explicou a Arbóreo, que Kepler, à custa de muito estudo e de muitas noites sem dormir, estabeleceu as leis do movimento planetário, que viriam a tornar o seu nome famoso na história da ciência.

Ao mesmo tempo que os ramos lhe cresciam na cabeça, arqueando-se e caindo em volta do seu corpo, vergados ao peso dos frutos, das folhas e dos pássaros que neles procuravam abrigo, Arbóreo percebia que as ideias de Kepler também não paravam de crescer e de se iluminar, como se tivessem luz própria.

O astrónomo fez dele seu confidente, porque, sabendo-o amigo das estrelas, podia confiar nele e revelar-lhe muitos dos seus projetos e segredos.

Foi assim que ficou a saber que Kepler se preparava para publicar um livro chamado «As Harmonias do Mundo», no qual dava explicações novas para muitas das coisas que aconteciam no Universo. Tinha uma especial predileção pela palavra «harmonia», porque era dela que dependiam, segundo dizia, a beleza e a ordem de todo o movimento planetário. E pensava outras coisas bonitas.

– O Universo – disse um dia a Arbóreo – é uma sinfonia de vozes e a cada planeta corresponde uma nota de música. Para a Terra há duas notas, o Fá e o Mi, que se repetem eternamente, até ao fim dos tempos.

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Ao escutar estas palavras, Arbóreo murmurou baixinho:

– Quem diz coisas assim tão belas só pode ser um poeta.

E nunca chegou verdadeiramente a perceber que, afinal, os astrónomos também são poetas, poetas da luz e da sombra, do brilho e da noite.

*

Quando Kepler concluiu a investigação que o conduziu à descoberta da terceira lei do movimento planetário, quase não teve tempo para festejar o acontecimento, porque, passados poucos dias, deu-se em Praga o incidente que originou a terrível Guerra dos Trinta Anos.

Tanto Kepler como Arbóreo odiavam a guerra, porque sabiam que ela não costuma poupar nem vidas nem ideias, que semeia o terror e a destruição, que só espalha fome, doença e desamparo. Ambos viriam a morrer em consequência desse conflito e estavam condenados a sofrer bastante antes que o fim chegasse.

O rei que protegia Kepler e apoiava o seu trabalho científico foi deposto e assim o astrónomo teve de se exilar, como já acontecera a muitos outros cientistas do seu tempo. Aqueles que passaram a governar Praga nesses dias exigiram-lhe que aceitasse a sua doutrina e, como Kepler tivesse recusado, ordenaram-lhe que partisse.

Ele hesitou bastante antes de o fazer. Tinha a mulher e o filho doentes, atingidos por uma epidemia espalhada pelos soldados, que já matara muitos milhares de pessoas, e recebera a notícia de que sua mãe, Catarina Kepler, fora pressa sob a acusação de praticar bruxaria. «A minha mãe não é bruxa, não pode ser verdade», pensou, mordendo os lábios de revolta.

Foi nesse estado de desânimo que procurou Arbóreo para desabafar.

– Que hei de eu fazer, meu amigo? Tudo escurece à minha volta como se tivesse chegado a noite do mundo e nunca mais voltasse a haver dia.

– É preciso que tenhas confiança e não percas a calma. Melhores dias hão-de chegar, podes estar certo.

– Onde descobriste tu isso? – perguntou Kepler com uma ironia amarga. – Não me digas que o leste nos astros!

– Não – respondeu Arbóreo, com firmeza – aprendi-o contigo.

– A epidemia está prestes a roubar-me aqueles que mais amo, minha mãe pode ser levada à fogueira. É terrível quando os homens usam o ferro e o fogo para imporem as suas razões. Que vai ser de mim?

– Que vai ser de nós? Também a mim já me procuraram, ameaçando-me com a prisão se não explicar o mistério da árvore que tenho na cabeça. Por isso, como vês, também eu não vivo melhores dias.

Olhando em toda a volta para ver se estava em segurança, Kepler tirou um livro que trazia escondido debaixo da roupa e entregou-o a Arbóreo.

– Guarda-o, por favor, no meio dos teus ramos, e não o dês a ninguém. Se te perguntarem como foi aí parar, diz-lhes que foi uma estrela quem to ofereceu.

Arbóreo viu que se chamava «Somnium», que significa «sonho» em latim, e, passado rapidamente os olhos pelas páginas carregadas de carateres e de desenhos, percebeu que falava de uma viagem imaginária à Lua, a qual, segundo Kepler já lhe dissera, devia ser habitada por seres capazes de cavar as grandes crateras que se viam na sua superfície rugosa e iluminada.

– Deve ser um livro muito belo – comentou Arbóreo.

– E também perigoso – acrescentou Kepler – porque defende ideias raras que não agradam àqueles que mandam nos reinos desta Terra.

Dizendo isto partiu, misturando-se com as sombras esguias do crepúsculo. De Praga foi para a cidade de Vurtemberga, onde, disfarçando as lágrimas, encontrou a mãe acorrentada numa masmorra, acusada de vender ervas misteriosas que alucinavam e faziam enlouquecer. Ele sabia-a inocente, mas não tinha meios para o provar. Aquele era um tempo de crueldade e de intolerância. Ninguém ouvia ninguém, ninguém lutava para demonstrar a inocência de ninguém.

Quando regressou a Praga, viajando por campos e aldeias saqueados e destruídos pelo fogo, já não encontrou a mulher e o filho vivos. Correu para o parque e, porque esta é uma história triste e desolada, deparou com uma clareira no sítio onde costumava conversar com Arbóreo. Tinham-no levado.

Um velho carvalho, ali mesmo ao lado, segredou-lhe com grossas lágrimas de seiva a escorrerem-lhe pelo tronco:

– Levaram-no a ele e a muitas outras árvores, porque dizem que precisam de lenha para alimentarem as caldeiras e de madeira para construírem torres de assalto e aríetes para arrombarem portas de castelos. Vou sentir a sua falta. Embora fosse mais árvore que homem, gostava muito dele. Entendíamo-nos muito bem. Levou consigo pássaros e borboletas, os seus companheiros de sempre. E também muitas ideias dentro da cabeça.

Kepler não soube o que havia de responder. Era um daqueles momentos em que as palavras não têm qualquer valor, sobretudo se forem trocadas entre um astrónomo e uma árvore. Cobriu o rosto com a capa negra, para ninguém o ver chorar, e partiu sem bagagem para outra cidade.

Voltou a ter-se notícias dele em Sagan, uma cidade da Silésia, onde fazia horóscopos para o duque Wallenstein. Ele que era astrónomo e não astrólogo, ou seja, cientista e não adivinho, não deve ter passado com alegria os últimos anos da sua vida, pois ninguém fica feliz por ter de fazer, só para comer, aquilo de que não gosta, aquilo que vai contra os seus princípios e desejos.

Todos os dias o duque, sentado no seu trono de veludo e ouro, lhe dizia:

– Que posso esperar hoje dos astros, mestre Kepler? Se não estiverem de feição, nem me arrisco a deixar o castelo.

E o pobre Kepler fazia das tripas coração e lia nos astros coisas que a ciência desmentia.

Quando morreu, triste e solitário, ordenou que escrevessem na pedra da sua sepultura: «Medi os astros, agora meço as sombras. O Espírito volta-se para o céu, o corpo repousa na Terra».

Há quem garanta que, depois de ser sepultado, apareceu junto da campa uma árvore que nunca ninguém ali vira antes. Era uma árvore de fruto, com o tronco largo e ramos que pareciam braços estendidos em direção ao céu, como se quisessem abraçar as estrelas.

As crianças que faziam rodas à volta da árvore começaram a espalhar a notícia de que ela falava e de que parecia ter, no meio do tronco, dois olhos de onde escorriam abundantes lágrimas. Mas ninguém se atreveu a acreditar nelas. Uma das crianças chegou mesmo a ver, desenhada na casca grossa, a palavra «Arbóreo», mas não sabia o que significava. Ninguém sabia.

Mais de trinta anos passaram sobre o desaparecimento de Kepler e de Arbóreo até que nasceu em Inglaterra um menino muito pequeno e doente, tão pequeno que a mãe dizia que cabia dentro de uma caneca de cerveja. Tinha no rosto tamanhos sinais de doença que parecia nunca ter visto a luz do sol. Chamava-se Isaac Newton, e deve ter lido no grande livro do céu as conversas fantásticas de Kepler com Arbóreo. Da sua cabeça não nasceu nenhuma árvore, mas ideias de luz que transformaram a compreensão do Universo e a vida dos homens.

Diz-se até que foi a uma árvore rara que Newton foi buscar a maçã que usou para demonstrar a Lei de Gravidade. Explicava ele que a mesma força que atrai a maçã para a Terra mantém a Lua na sua órbita. Essa maçã tinha um sabor igual ao dos frutos que cresciam na cabeça de Arbóreo.

* * *

Nota do Autor

«O Homem que Tinha uma Árvore na Cabeça» não é um livro sobre ciência, embora nele se fale de três cientistas: João Kepler, Tycho Brahe e Isaac Newton. Os dois primeiros são contemporâneos, ou seja, viveram na mesma época. O terceiro, dos três o mais célebre, nasceu doze anos depois da morte de Kepler. Que cientistas foram estes? Tycho Brahe nasceu em Knudstrup, na Dinamarca, em 1546, e morreu em Praga em 1601. Rico e dedicado ao estudo da astronomia, ajudou Kepler nos momentos difíceis da sua vida e apontou-lhe o caminho para o que viria a ser a Lei sobre o Movimento dos Planetas.

Johannes (João) Kepler nasceu perto de Weil, Wurttemberg, na Alemanha, em 1571, e morreu em Regenburg, também na Alemanha, em 1630. Teve uma vida que a doença, a pobreza e a guerra tornaram muito dura, mas nunca deixou de estudar e de trabalhar. Sem as conclusões científicas a que chegou, nunca Isaac Newton teria enunciado o Princípio da Atração Universal, que provocou uma verdadeira revolução na Física e na relação do Homem com a Natureza e com o Universo.

Isaac Newton nasceu em Woolsthorpe, Inglaterra, em 1642, e morreu em Kensington, Inglaterra, em 1727. Alcançou, com o seu trabalho como matemático, físico e astrónomo, popularidade e fortuna, sendo considerado um dos génios do pensamento científico. Formulou a teoria da composição da luz branca, descobriu as Leis da Atração Universal e, ao mesmo tempo que Leibniz, achou as bases do Cálculo Diferencial.

Quando se fala do episódio da «maçã de Newton», referido também no fim desta história, dá-se como verdadeiro o seguinte: um dia o cientista terá visto cair uma maçã, concluindo que o movimento da Lua se podia explicar por uma força da mesma natureza. Estendeu essa teoria aos planetas do sistema solar e os cálculos que fez permitiram-lhe confirmar as leis anteriormente enunciadas por Kepler.

A pequena história que vos quis contar, se alguma coisa tenta dar a ver, é que os grandes avanços na história da ciência e na vida da humanidade resultaram sempre da soma de esforços, trabalhos, sonhos e lutas de homens e mulheres que, em muitos casos, nem sabiam da existência uns dos outros. Havia somente um fio a uni-los: o da inteligência e o da capacidade de sonhar.

Ao falar de Kepler, Brahe e Newton nada quis ensinar ou explicar. Tentei apenas contar uma história inventada (Arbóreo nunca existiu) em que também há lugar para figuras reais, por sinal três cientistas. O resto é poesia, imaginação, gosto de inventar. Inventem, vocês também, outras
histórias a partir desta. As histórias melhores são sempre as que abrem portas para outras histórias. E já agora, espero que a leitura de «O Homem que Tinha uma Árvore na Cabeça» crie em vós o interesse pelas coisas da ciência. E também pelas da literatura.

José Jorge Letria
O homem que tinha uma árvore na cabeça
Porto, Porto Editora, 1991
Adaptação

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