O Tio Vasculho

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O Tio Vasculho varria, naturalmente. Nem mesmo podia fazer outra coisa porque nunca aprendera a ler nem a escrever.

Como no seu tempo as crianças não tinham obrigação de andar na escola, e o pai achava que ele lhe fazia mais falta para sachar as favas ou para guardar o milho da eira, o cachopito crescera sem saber distinguir um A de um B, mas nunca se tinha ralado muito com isso. Podia ter aprendido um ofício qualquer, é verdade. Mas, habituado a não ter sujeições, o rapaz sentia-se atabafado entre as quatro paredes da oficina, e volta não volta ia dar um giro pelos campos, o que trazia sempre como resultado ser despedido pelos patrões que lhe davam emprego.

Nisto se foram passando os anos, e, chegado a velho, o Tio Vasculho só servia para varrer. Quem lhe havia posto o nome tinham sido os garotos do bairro: Tio Vasculho! Não era por troça; era só por graça. O Tio Vasculho empunhava uma vassoura tão grande e tinha uns bigodes tão façanhudos que o nome lhe estava mesmo a calhar. O Tio Vasculho não se zangava. Até se ria. E continuava a varrer o largo e as ruas da cidade. Tinha uma autêntica fúria de limpeza.

Papel sujo caído no passeio ao alcance da vassoura – zás! – era papel varrido para o monte e apanhado na pá do lixo. Espinha de carapau, casca de laranja ou de ervilha que as donas de casa desmazeladas atirassem para a rua iam despachadas em grande velocidade com o mesmo destino, à frente do Tio Vasculho. Pratinha de chocolate ou cartucho lambuzado de gelado rodopiavam sem piedade nas barbas da sua vassoura. O Tio Vasculho não perdoava nem a mais ligeira falta de asseio. E quando via alguém deitar para o chão papéis velhos ou cascas de fruta, ralhava sem cerimónia e fosse lá com quem fosse!

Havia uma única espécie de lixo que o não indignava: as folhas secas do Outono. O Tio Vasculho tinha por elas uma verdadeira paixão. Eram tão lindas! As folhas das olaias, redondas e doiradas, pareciam-lhe montes de libras enormes. As dos plátanos, cor de cobre, essas eram como estrelas caídas por engano no empedrado dos passeios ou no alcatrão da rua. E havia muitas outras, miudinhas ou largas, vermelhas ou amarelo-canário, cor de mel ou cor de pinhão…

O Tio Vasculho varria-as também, já se sabe, porque o seu trabalho era varrer e porque as ruas querem-se limpas, mas não o fazia com a fúria que empregava para varrer as coisas sujas. Varria-as com amor, juntando-as cuidadosamente como quem junta um tesouro precioso. Era para ele o momento melhor do ano, esse tempo do outono quando caíam as folhas. E o Tio Vasculho sentia-se poeta, mesmo sem saber fazer versos. (Porque ser poeta é só isto: admirar e amar as coisas lindas que há no mundo à nossa volta.) E por isso, apesar de velho e trôpego, o Tio Vasculho era feliz. Até que um dia…

Um dia, a cidadezinha antiga onde morava o Tio Vasculho passou por uma grande transformação: arrasaram-se prédios velhos das ruas estreitas para abrir largas avenidas, as árvores antigas foram também deitadas abaixo porque – diziam certas pessoas – as suas raízes furavam os alicerces dos prédios e os ramos altos iam bater nos fios telefónicos… A cidade velha modernizou-se, e o próprio lixo passou a ser chupado por máquinas parecidas com motoretas, que faziam um barulho dos diabos, mas deixavam o chão capaz de se lamber, tão asseado ficava. E com todas aquelas modas novas, o Tio Vasculho ficou sem ter nada que fazer.

Coitado do Tio Vasculho!

Arrumou a vassoura ao canto da barraquita onde morava. (Porque, infelizmente, as transformações da cidade não tinham sido tão grandes que não continuasse a haver barraquitas de tábua e lata que serviam de casa aos pobres como o Tio Vasculho.) Mas ele, que toda a vida só gostara de trabalhar ao ar livre, que ia fazer agora? E começou a entristecer com saudades. Saudades principalmente das lindas folhas doiradas e vermelhas que eram o seu tesouro do outono.

Ninguém sabe como aquilo aconteceu.

Talvez o vento tivesse reparado nos olhos tristes do Tio Vasculho. Ou então foi Deus quem o mandou reparar. O certo é que o vento passou palavra às árvores da estrada que saía da cidade, e as árvores, embora distantes da barraca do Tio Vasculho, sacudindo os ramos, disseram logo que sim, que o vento lhes podia arrancar todas as folhas que quisesse para as levar ao velho varredor. E o vento soprou com força, arrastando à sua frente milhares de folhas secas que vieram tombar à porta da barraquita. O Tio Vasculho sentiu uma grande alegria ao vê-las. Pegou na vassoura e varreu, varreu, como se lhe voltasse aos braços a energia dos vinte anos.

Nunca os habitantes da cidade entenderam (e os senhores do boletim meteorológico ainda menos) por que motivo todos os anos, pontualmente, o vento mudava de direção e, soprando do lado da estrada que saía da cidade, trazia pelo ar milhões de folhas de todas as cores, que não caíam nas avenidas, mas se juntavam todas no bairro de lata que ficava longe do centro.

Então, o Tio Vasculho, de vassoura em punho, voltava a sentir-se poeta, mesmo sem saber escrever versos…

Maria Isabel de Mendonça Soares
Maria Maçã e outras histórias
Lisboa, Editorial Verbo, 1986

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