Em tempos que já lá vão, vivia num palácio um rei muito bom e muito justo, chamado Hélio, que era casado com uma linda rainha chamada Diana.
Nunca se viu casal mais feliz, nem mesmo nos contos de fadas. Mas alguma coisa lhes faltava!… Faltava-lhes um filho.
E certa tarde de verão – oh, que alegria! – nasceu no palácio um lindo menino, loiro como as searas.
Fez-se uma grande festa, convidaram-se os reis, rainhas e príncipes de todos os reinos vizinhos, e muitas outras pessoas importantes, para o batizado do menino. Foi padrinho o Sol e madrinha a Lua, e puseram-lhe o nome de Luciano.
Quando a ama lhe pegou, ao pé da pia da água benta, achou o príncipe pesado de mais e, parecendo-lhe que aquilo não era natural, aconselhou o rei e a rainha a mandarem o filho ao médico.
Mas os príncipes não vão ao médico; o médico é que vai ao palácio. Por isso, logo no dia seguinte, o rei e a rainha, muito assustados, mandaram chamar os três melhores físicos do reino para descobrirem porque é que o príncipe pesava tanto.
Com os óculos na ponta do nariz, inclinados sobre o berço, os três físicos auscultaram o príncipe, apalparam-no, meteram-lhe o cabo da colher na boca para verem se tinha a língua suja, viraram-no por todos os lados, e ficaram calados, a olhar uns para os outros com cara de parvos.
— Então? — perguntou a rainha, ansiosa.
— O menino pesa muito — disse o primeiro físico, cheio de importância —, porque certamente tem mamado demais. Nesta idade as crianças são muito gulosas, e o melhor é reduzir-lhe o biberão a metade. De outra forma, até pode rebentar. Já está a ficar de uma cor esquisita. E com esta cor que as pessoas rebentam.
— Ai, o meu rico menino! — gritou a rainha, aflitíssima.
— Não se assuste Vossa Alteza — interrompeu o segundo físico — que este meu colega não disse senão asneiras. Deixe o menino mamar à vontade, que não é por isso que o príncipe vai rebentar. Nestas idades as crianças são muito gulosas, e não faz mal nenhum que aumentem de peso. É verdade que o menino tem uma cor esquisita, assim a puxar para o dourado, mas, sendo afilhado do Sol e da Lua, o caso também não é de estranhar.
— A puxar para o dourado? — exclamou o terceiro físico. — O meu colega não sabe o que está a dizer. Até um cego vê que o menino é de ouro, e por isso pesa tanto.
— Tem a certeza? — perguntou o rei, com os olhos muito abertos.
— Absoluta! — afirmou o terceiro físico. — Ouro maciço. Veja Vossa Alteza que até tem a marca nas costas, como tudo o que é feito de ouro. Aqui, estas duas covinhas.
Todos viram, e perceberam, que o príncipe era realmente de ouro maciço.
— E não lhe fará mal à saúde? — perguntou a rainha, preocupada.
— Absolutamente nenhum! Fora isso, é um perfeito exemplar de bebé. Pode dizer-se que o príncipe vale quanto pesa. E quanto mais crescer, mais valerá.
Os três físicos fizeram uma vénia até ao chão e saíram do palácio, os dois primeiros furiosos por não terem acertado e o terceiro rindo com os seus botões:
«Um príncipe de ouro!… É a coisa mais extraordinária que vi até hoje.»
Depressa se espalhou no reino a notícia de que o príncipe era de ouro, e todos o quiseram ver e tocar-lhe, porque nunca tinham ouvido falar de coisa semelhante. Até faziam bicha à porta do palácio. Uns poucos de ourives levaram o seu material e fizeram a experiência com ácidos, garantindo que o príncipe era de facto de ouro maciço dos pés à cabeça, e do mais fino quilate. Alguns pesaram-no, e concluíram que, mesmo ainda tão pequenino, o príncipe valia uma fortuna. Outros cobiçaram aquele ouro todo, imaginando a quantidade de anéis, cordões, brincos e pulseiras que se podia fabricar com ele.
Mas, por ser tão extraordinário, o caso deu muito que pensar ao povo, que logo começou a dizer que aquilo era feitiço ou praga, e que nada podia suceder de bom numa terra onde nascia um menino de ouro. O rei e a rainha também andavam preocupados, porque antes queriam ter um filho de carne e osso, como toda a gente, e não percebiam como aquilo acontecera.
E o príncipe foi crescendo, até que chegou à idade adulta, gozando de boa saúde, mas sempre de ouro. Eram de ouro os cabelos compridos e ondulados, a testa, as orelhas; os olhos eram de ouro, os dentes também, que até pareciam postiços; eram de ouro a pele, as unhas e a barba… Parecia uma estátua de ouro, e bonito que se fartava!
Num dia de verão, o rei Hélio foi à caça, apanhou muito sol e morreu nessa tarde. A rainha Diana, com o desgosto, ficou uma noite inteira sentada na varanda, à luz da Lua, a pensar na sua vida, e morreu na manhã seguinte.
O príncipe subiu ao trono, ainda de luto, e, como era muito inteligente e muito bom, governou muito bem o seu povo, que gostava muito dele, apesar de ser de ouro.
Mas nova desgraça sucedeu naquele reino. Nesse mesmo ano houve uma grande seca. Murcharam as searas, morreram as árvores e os animais, e o povo passava muita fominha. Logo a seguir, as tempestades de granizo estragaram os frutos. Depois choveu noites a fio, houve grandes cheias, e toda a gente ficou sem casa.
O povo estava na maior miséria, e um dia foi em peso ao palácio para falar com o príncipe Luciano.
O príncipe, que sofria por ver o seu povo tão infeliz, perguntou o que queriam. Então, o homem mais velho do reino disse que o povo não tinha dinheiro para comer, nem mandar fazer casas, nem comprar roupas e sapatos, e que não era justo passar tantas privações quando havia no palácio remédio para todos aqueles males. O príncipe já mandara distribuir tudo quanto tinha pelos pobres, e vivia quase tão miseravelmente como eles. Também passava fome, e não percebeu o que queriam.
O homem mais velho do reino explicou então que todos sabiam que ele valia uma fortuna em ouro, que chegaria para dar de comer a toda a gente, mandar fazer casas e comprar roupas e sapatos. E, por isso, vinham pedir-lhe que rapasse o cabelo à escovinha e fizesse a barba, que cortasse as unhas rentes, e arrancasse um ou outro dente que não lhe fizesse muita falta, para vender tudo a peso e distribuir o dinheiro pelos pobres.
Então o príncipe, que tinha também um coração de ouro, voltou-se para eles e disse:
— Podia dar-lhes os meus cabelos, as minhas unhas, a minha barba e os meus dentes todos, mas o dinheiro que valem, distribuído, não chegava nada a cada um. Por isso, aqui têm o meu corpo. Matem-me e dividam-me como bons irmãos. Depois arranjem outro rei, e que Deus os proteja.
O povo, comovido com a boa vontade daquele príncipe tão bom, começou a pensar. As mulheres choravam baixinho. Um dos homens voltou-se para a multidão e perguntou:
— O que vale mais? Um rei bom ou um rei rico?
— Um rei bom! — gritaram todos.
— O que vale mais? — continuou o homem. — O ouro ou a vida?
— A vida! — gritaram todos novamente.
— O que é melhor? — tornou a perguntar o homem. — Ter tudo à custa da morte de outra pessoa ou viver com dificuldades com a consciência tranquila?
— Antes viver com dificuldades! — ouviu-se de todos os lados.
Depois disto, o povo saiu do palácio e foi para os campos, que já não davam nada.
Nessa mesma tarde, o príncipe de ouro voltou-se para o Sol, seu padrinho, e pediu-lhe que fosse bom para o seu povo e não aquecesse demasiado a terra para não a secar.
À noite pediu à madrinha Lua que não trouxesse tanta chuva, para não haver cheias que tudo levam.
Efetivamente, a partir desse dia, aquele reino passou a ter o clima mais suave da Terra. Cresceram novamente as árvores e as searas. Tornaram a aparecer animais e frutos por toda a parte, e o povo foi muito feliz, governado pelo príncipe de ouro. Era todo de ouro: cabelos de ouro, olhos de ouro, orelhas de ouro, boca de ouro, dentes de ouro, que até pareciam postiços, corpo de ouro, mãos de ouro, enfim, tudo de ouro. E bonito que se fartava!
Ah, não se esqueçam: o coração também era de ouro!…
Ricardo Alberty
O príncipe de ouro e outras histórias
Lisboa, Editorial Verbo, 1989