Visita tardia
Rute estava a pôr a mesa para o jantar e tinha mandado Micha à cozinha buscar o pão quando bateram à porta de casa, pesada, de madeira. O rapazinho parou por instantes e ia a correr para a porta. Mas um sonoro “Alto!” do pai deteve-o.
— Quando já tiver escurecido lá fora, é melhor ser eu a abrir a porta — diz o pai, levantando-se da mesa. Pegou na lamparina de óleo e seguiu sem pressa pelo vestíbulo estreito até à porta.
— Sabe-se lá quem é que anda pelas ruas, tão perto da festa da Páscoa — diz a mãe observando o marido, Jonatan, correr para o lado uma tabuinha da porta e olhar para fora através de uma fresta estreita.
— Não abras — sussurrou-lhe, pondo-se atrás dele. — Quem quiser alguma coisa de nós também pode vir cá amanhã. De manhã, com luz.
Rebeca e Ariel, os irmãos mais novos de Micha, não se tinham levantado da mesa. Observavam o pai, espantados.
Jonatan voltou a correr a tabuinha e preparou-se para correr o trinco pesado.
— Jonatan — disse Rute a medo, agarrando-lhe no braço. Mas Jonatan virou-se ligeiramente para trás com um sorriso comprometedor e fez-lhes um aceno de cabeça para acalmá-los a todos.
— Não acredito, são vocês! — disse para fora ao abrir a porta para deixar entrar uma mulher e duas crianças. — Mas só estavam a pensar chegar amanhã ou depois. O que vos fez vir ainda hoje a Jerusalém e a uma hora tão tardia?
— Queríamos sem falta estar em vossa casa para a festa da Páscoa — respondeu a mulher. — Os outros ainda montaram o acampamento às portas da cidade mas nós queríamos, sem falta, vir ter com vocês ainda hoje.
— Marta! — exclamou Rute, correndo com passos largos para a mulher e abraçou-a.
De seguida cumprimentou as duas crianças que se encostavam à senhora, um pouco amedrontados e tímidos.
— Tu deves ser a Ester, de certeza — disse Rute numa voz calorosa. — E tu deves ser o Daniel. — E quando os dois abanaram a cabeça em sinal afirmativo, perguntou a rir:
— Então, de certeza que sabem quem eu sou.
— A tia Rute — disseram Ester e Daniel em coro.
— Vocês chegaram mesmo a tempo do jantar! — Rute empurrou-os para a mesa onde ainda havia espaço suficiente.
Entretanto, Jonatan tinha fechado e trancado a porta e juntava-se a eles.
— Micha, Rebeca.
Os filhos sabiam exactamente o que o pai queria dizer ao olhar para eles e apontando para as visitas. Saíram e trouxeram duas bacias de água, que colocaram frente das crianças.
— Temos sempre muito tempo — disse Rute. Baixou-se em frente de Daniel e Ester e tirou-lhes as sandálias dos pés. As crianças meteram-nos imediatamente na bacia.
Micha observava furtivamente como a mulher tirava agora as sandálias e lavava o pó dos pés. Era mesmo muito parecida com a mãe.
— Os teus filhos também já estão grandes, Rute — dizia ela naquele momento. E quando Rebeca lhe deu um pano para se limpar, fez-lhe uma festa no cabelo.
— Ainda não tinhas nascido quando fui para Canã — disse em voz baixa. — E o Micha tinha feito dois anos. — Sorriu-lhe com os olhos pretos e Micha viu que ela era lindíssima. — De certeza que já não te lembras de mim.
Então ela era a tia Marta, a irmã da mãe, de quem ela tanto lhes tinha falado. A tia Marta tinha-se mudado para Canã há muitos anos com Tomás, o marido. Tomás viera na altura a Jerusalém para a festa de Passah. Marta e ele tinham-se conhecido e apaixonado um pelo outro imediatamente. Mas depois da festa da Páscoa, ele teve de regressar a Canã, onde moravam os pais e onde tinha o seu trabalho. Mas, passado meio ano, estava de volta e falou com os pais de Marta e o pai consentiu que casasse com ela. Desde o casamento que Marta e Tomás viviam em Canã. Os avós de Micha tinham viajado até Canã para o casamento, mas geralmente moravam com o tio David, apenas algumas ruas afastados da família de Micha.
Desde aquela altura que as irmãs nunca mais se tinham visto. O caminho para Jerusalém era longe e Rute também não tinha saído de Jerusalém. Entretanto, Micha já tinha dez anos e Rebeca oito.
— Tu deves ser um pouco mais nova do que a Ester — disse a tia Marta. — Ela vai fazer nove para a semana.
— Eu já tenho oito há muito tempo — responde Rebeca, com orgulho. — No mínimo, há duas semanas. — Olhou admirada em volta quando todos se riram. Tinha a certeza de que não tinha dito nada engraçado.
— E o Daniel tem a mesma idade que eu — exclamou Ester, agradecendo com a cabeça quando a mãe deitou verdura no prato.
— Isso não é possível! — disse Rebeca abruptamente.
— É — respondeu Daniel. Era a primeira vez que ele dizia alguma coisa. — Claro que é. Nós somos gémeos.
Agora riram-se todos porque Rebeca estava boquiaberta.
— Tenho ainda uma pequena surpresa para todos — a mãe entrava com uma terrina que colocou no centro da mesa. Assim que levantou a tampa, Daniel exclamou, felicíssimo:
— Peixe!
— Peixe é a comida preferida dele — explicou Marta.
Apressaram-se a repartir o peixe, pois só sabia bem quando comido ainda quente. Todos se serviram e chegou para todos.
— Onde é que deixaram o vosso pai? — perguntou Jonatan depois de comer. — De certeza que não fizeram sozinhos o longo caminho de Canã até Jerusalém!
— Quando é que partiram? — perguntou Rebeca entretanto. — Quanto tempo estiveram a caminho?
— Eles montaram um acampamento aqui pertinho, entre duas aldeias — contou Marta. — O Tomás também lá está.
— Onde? — perguntou Rute.
— Entre Betfagé e Betânia — Marta sorriu. — Mas eu não consegui esperar mais. Queria, sem falta, voltar a ver a minha irmã.
Rute passou imediatamente o braço à volta dela.
— Conheço Betânia — disse Jonatan. — Já lá estive. Mas porque é que Tomás não veio contigo? Já que está tão perto de nós não precisa de ficar a dormir num acampamento. Temos espaço que chegue.
— Queria ficar com o Mestre — respondeu Marta em voz baixa. — E também queriam ainda arranjar um burro para o Mestre. O Tomás vem amanhã, com toda a certeza.
— Já vimos a caminho há muito tempo — informou então Daniel.
Marta confirmou com um aceno de cabeça. — Há mais de três meses.
— Três meses? — Micha não queria acreditar. — É preciso assim tanto tempo para vir de Canã a Jerusalém?
— Nós vimos a seguir Jesus — respondeu Ester em voz baixa. — Ele tinha de parar em todo o lado, porque havia muita gente que lhe queria falar! Foi por isso que demorou tanto tempo.
— Receberam a minha mensagem, não? — perguntava agora Marta.
Jonatan disse que sim com a cabeça.
— Claro. Também avisámos logo os teus pais. Estão à vossa espera amanhã e estão muito contentes por irem ver-vos a todos.
Jonatan olhou pensativamente para Marta.
— Vocês têm andado com esse Jesus de Nazaré? — perguntou, um tanto incrédulo. Quando as crianças acenaram com a cabeça em sinal afirmativo, disse:
— Ouvi falar dele.
— Quem é? — perguntou Micha imediatamente. — Que tipo de pessoa é?
— Jesus é Jesus — respondeu Daniel em poucas palavras.
— E vocês já andam com ele há mais de três meses? — Rute abanava a cabeça, admirada. — E o teu homem deixou simplesmente o trabalho?
A irmã abanou a cabeça. — Não só o Tomás. Outros também.
— E a vossa casa? As galinhas e os gansos? Abandonou tudo, assim sem mais?
— Eu também, Rute.
— Nós os quatro — confirmou Ester e Daniel. — Agora são o avô e a avó que têm de tomar conta de tudo lá em casa.
— José, o irmão de Tomás, prometeu cuidar de tudo — acrescentou Marta. — Também queria ter vindo mas acabou por ficar em Canã.
— Ao menos alguém tem de manter a cabeça no lugar — resmungou Jonatan. — Mas eu não entendo nada disso.
E abanava a cabeça de um lado para o outro, duvidoso.
— Isso não pode ser assim tão simples, sem consequências. Não pode chegar uma pessoa, sem mais, e vocês largarem tudo e segui-lo. Tu, o teu marido e as crianças.
— Bem vês que foi exactamente assim — respondeu simplesmente a cunhada.
— E de que é que viveram durante esse tempo todo? Têm economias? Já gastaram tudo?
— Por favor, Jonatan — Rute fê-lo calar imediatamente. — Isso agora não é nada da tua conta!
— Juntámos todos o dinheiro, os que andam com Jesus — Marta disse aquilo de forma tão natural como se não houvesse nenhuma dificuldade ou dúvidas. — E chegou sempre para todos.
— Quantos é que foram? — perguntou Jonatan.
— Às vezes vinte, às vezes trinta ou mais. Homens, mulheres e crianças — contou ela. — Judas gere o dinheiro e ele consegue fazer com que tenhamos sempre o suficiente para comer e beber.
— E quando o dinheiro se esgotou? — Jonatan não desistia.
— Então foi Jesus que nos sustentou — Daniel respondeu à pergunta.
— Ah, Jesus… Mas como? Tinha mais dinheiro em caixa?
— Não — desta vez foi Ester que respondeu a rir. Ela ficava admirada como é que os adultos, por vezes, podem fazer perguntas tão parvas. — Ele disse uma oração. Depois repartimos o pão e chegou para todos.
— E primeiro eram só cinco pães — acrescentou Daniel. — Eu vi muito bem.
— Cinco pães e dois peixes — disse Ester.
— E no fim ficaram todos sem fome? — pergunta Rebeca assombrada.
— Eram muitas pessoas a comer — continuou Marta a contar. — Diz-se que mais de cinco mil.
— E todos satisfeitos? — Micha não podia acreditar.
— Sim, todos — disse a tia Marta — Bem, ele é o Messias!
— O Messias? — perguntou Rebeca hesitante.
— O Salvador — a tia Marta abanou a cabeça. — Messias é como muitos o tratam.
Há muito tempo que esperamos este salvador. Já nos livros antigos lhe é feito referência.
— O Messias é uma pessoa que é ungida — Ester tenta explicar à prima. — Quando uma pessoa se torna rei, é ungida com óleo precioso sagrado.
— Jesus é esse salvador? — pergunta Micha. — Deus ungiu-o a rei?
— Sim — respondeu Marta.
— Mas ele não quer que o tratemos assim — objectou Daniel.
— Então como é que o tratam? — quis saber Rebeca.
— Os adultos tratam-no por Mestre ou Senhor — respondeu Daniel.
Rute voltou-se para o marido: — Já sabias deste Messias? — perguntou.
— Pouco — disse Jonatan em voz baixa.
— Porque é que nunca falaste dele?
— Não levei tudo isto muito a sério.
— Amanhã ele vem a Jerusalém! — exclamou Ester. — Os amigos vão arranjar-lhe um burro ainda hoje.
— Vai entrar pela porta de Jerusalém montado num burro — os olhos de Daniel brilhavam. — Vai entrar pela porta como um verdadeiro rei.
— Se calhar nem vai haver muita gente a reparar nele — Marta esfriava-lhe o entusiasmo. — Vai ser discreto como sempre. Ninguém vai pensar que aquele homem tão simples é um rei.
Ester olhou para a mãe, admirada.
— Mas os amigos dele aqui em Jerusalém de certeza que vão recebê-lo com júbilo.
Marta fez-lhe uma festa na cara e disse a Jonatan:
— Jesus queria reunir-se à noite com os amigos em Jerusalém e festejar a Páscoa — pensou um pouco. — Não há ali no cimo da cidade aquela sala bonita?
Jonatan fez de conta que não sabia do que ela estava a falar.
— Claro que sabes qual é — Rute deu-lhe um toque.
— Ah, essa sala! — acabou por dizer Jonatan.
— Podias tratar das coisas para que amanhã pudéssemos tê-la?
— Hmm — foi a resposta de Jonatan. Não era um sim, mas também não era um não.
Segue: Micha e o mistério da Páscoa – Conversas nocturnas (II)
Rolf Krenzer
Micha und das Osterwunder
Stuttgart, Gabriel Verlag, 2003
Traduzido e adaptado