Tenho medo daquele homem
Prefácio
Penso que todos sentimos “grandes medos” na nossa infância, provocados por adultos cujo comportamento era “diferente”. A maioria das vezes, escondíamos esses medos no mais profundo de nós mesmos, sem sequer ousarmos falar deles, com receio de que troçassem de nós, de que não nos compreendessem, de que nos dissessem: “Pára de inventar histórias!” Ainda bem que começámos, finalmente, a falar.
Tenho medo daquele homem é um livro importante para as crianças, porque mostra que podem confiar nos adultos, que estes compreendem os seus medos e as apoiam. O intuito desta obra é, pois, ajudar as crianças a exprimirem os seus medos e as suas angústias, e ensinar os adultos a responder às questões mais delicadas. Este diálogo entre pais e filhos sobre assuntos “incómodos” é essencial para a educação e desenvolvimento das nossas crianças.
Nathalie Baye
Sofia vem sozinha da escola
Sofia tem oito anos. É uma menina muito alegre, que gosta de se divertir com as amigas e de trocar mimos com os pais. Como todas as crianças da sua idade, anda na escola. Este ano, começou a vir sozinha para casa, às quatro e meia da tarde. Há já algum tempo que queria fazê-lo, mas só agora é que os pais concordaram. Sofia sente-se orgulhosa de poder fazer o mesmo que os mais velhos!
Sobretudo porque não corre riscos, já que fez este trajecto pelo menos umas trezentas vezes: ora com a mãe, ora com o pai, ora com a irmã mais velha. Sabe que ruas deve atravessar e que deve andar longe da berma do passeio. Assim, pode ficar a falar com as amigas à saída das aulas, antes de ir cada uma para sua casa. Também pode ajudar pessoas que estejam perdidas.
— Sabes onde há uma farmácia, filha?
— Não, só conheço padarias.
E pode ajudar idosos a transportar sacos pesados.
— Que menina amorosa!
Quando chega a casa, fica sempre contente por ter algum tempo para si. Conta o que aconteceu ao pai ou à mãe, quando estes estão em casa, ou fala com a irmã mais velha. Se não estiver ninguém em casa, sabe que deve telefonar à mãe.
— Sou eu, já cheguei. O dia correu bem. Vens tarde, mamã?
— Não te aflijas, chegamos para jantar.
Sofia não se aflige, pelo menos não tanto quanto a mãe, que quer sempre saber se ela chegou bem. Mas a verdade é que Sofia não gosta de estar sozinha em casa. Um dia, telefonou mais tarde, porque tinha ido acompanhar a amiga Maria a casa desta, e toda a família ficou preocupada. A mãe telefonou ao pai, que telefonou aos avós, e o telefone não parava de tocar!
— O que aconteceu? Perdeste-te?
— Não, fui só acompanhar a Maria. Não é grave.
— É, pois. Estávamos preocupados. As ruas não são seguras!
Sofia não percebeu o porquê da reacção da família. Se estava com a Maria, não havia razão para se preocuparem.
— A Maria mora a uns minutos daqui. Nem sequer tenho de atravessar ruas. Já sou grande!
— De acordo, mas tens de nos avisar.
Desde esse episódio que Sofia nunca mais se esquece de telefonar logo que chega a casa, para não afligir a família.
Parece que anda por aí um homem estranho
Há já alguns dias que Sofia e as amigas ouvem falar de um incidente estranho. Os alunos mais velhos falam de um homem que anda sozinho pela rua e que mostra a “pilinha” a todos os transeuntes. “É horrível”, comentam. Ninguém da escola o viu, mas sabem que usa um grande chapéu e que veste um impermeável cinzento, como nos filmes policiais.
“E se fosse tudo uma invenção?” pergunta-se Sofia, que sabe que, às vezes, as pessoas contam coisas que não são verdadeiras, só para se sentirem importantes. No ano anterior, uma menina tinha contado que se cruzara com um ursinho castanho, nas escadas do prédio onde morava, e que o tinha adoptado. Mas não deixava que ninguém o visse, sob pretexto de que o animal era muito selvagem. Com efeito, nunca ninguém o viu e, quando agora lhe falam dele, ela diz que o mandou de volta para a selva…
Sofia e as amigas acreditam que o ursinho possa ter existido, mas acham menos provável que o “homem” exista. Ninguém anda assim vestido na rua, e muito menos um adulto. Em casa, os pais de Sofia têm cuidado para não andarem nus diante das filhas. Quando tomam um duche, fecham sempre a porta da casa de banho. E, quando se vestem, fazem-no sempre no quarto.
Quando era pequenina, Sofia tomava banho com eles, sem problemas. Só que agora é diferente: ela própria não gosta que a vejam nua: tem pudor. Ter pudor é querer guardar as coisas para si, porque sentimos que os outros podem sentir-se incomodados. Sofia sabe que pudor é parecido com delicadeza, mas que está relacionado com assuntos mais sérios. Por isso, compreende que não se mostra a “pilinha” às pessoas.
Depois de terem falado entre elas sobre o assunto, Sofia e as amigas decidiram que se tratava de uma invenção. Esta resolução tranquilizou-as. A verdade é que sentiam medo. Como o Natal estava à porta, não faltavam tópicos de conversa: ideias sobre presentes, a decoração da casa, esperar pelo Pai Natal…
Ao querer salvar um gato
Com o decorrer das semanas, Sofia foi-se sentindo mais à vontade na rua. Às vezes, fazia um desvio pela tabacaria para comprar cromos ou ia até à loja de bombons. Um dia, quando já estava escuro, porque em Dezembro os dias são mais curtos, Sofia sentiu muito medo. Sentiu o coração a bater muito depressa e as pernas a ficarem sem força. Tinha acabado de deixar as amigas e tinha apressado o passo, porque estava muito frio.
Mesmo antes de chegar a casa, viu um gatinho que parecia ferido. É claro que a menina quis recolhê-lo, para poder tratar dele: todos os animais eram seus protegidos. Baixou-se e levantou os olhos, para ver se o gato tinha caído de alguma varanda. Foi então que viu o homem a mostrar a “pilinha”. Sofia não percebeu logo o que estava a passar-se. Começou a tremer de medo e desatou a correr em direcção a casa.
Felizmente, nesse dia, o pai não tinha ido trabalhar. Estava à espera dela para irem fazer as compras de Natal. Quando o pai abriu a porta, deu-se logo conta de que algo se passava. Como Sofia não conseguia falar, o pai pegou nela ao colo, para a acalmar. Sossegada pelos braços e pelo cheiro característico do pai, Sofia desatou a chorar convulsivamente, durante uns bons minutos, e fechou os olhos para não ver a imagem do homem.
Quando abriu os olhos de novo, pensou logo no gatinho que ficara lá fora.
— Papá, esqueci-me do gatinho. Ele pode morrer.
— Que gato? Anda, vamos procurá-lo.
— Eu não vou.
— Então vou eu.
— Não, não quero ficar sozinha. Tenho medo do homem.
— Que homem? Conta-me lá. Não estou a perceber.
Sofia tentou explicar ao pai, por palavras suas, o que se passou: as histórias que circulavam na escola, e nas quais não tinha acreditado, o gatinho ferido, e o homem da “pilinha” à mostra. Enquanto falava, voltou a sentir medo.
— Sabes, papá, fui obrigada a vê-lo e agora já não posso fazer de conta que não o vi.
Palavras difíceis de compreender
A partir daquele dia, a vida de Sofia mudou. Em casa, todos perceberam que o assunto era sério. Explicaram-lhe que a culpa não era dela e que o homem era um “exibicionista”. O pai foi à esquadra, contar o que se tinha passado e “apresentar queixa”.
— Aquilo não deve voltar a acontecer, nem contigo nem com as outras crianças.
Sofia achava tudo um pouco confuso:
— Diz-me, papá, porque será que aquilo mete tanto medo? Ele não me fez nada, mas sinto-me como se ele me tivesse feito mal!
É muito complicado para uma menina compreender expressões como “agressão sexual” e palavras como “traumatismo” e “exibicionista”. E também é muito complicado para um adulto explicá-lo através de palavras simples e tranquilizadoras. É claro que Sofia não está sempre a pensar nisso. Mas já não vem sozinha da escola. Tem medo e os pais não querem. Também não quer ficar sozinha quando escurece e, à noite, dorme com uma luz acesa. Confessa:
— Dantes tinha medo de fantasmas e de dragões, embora soubesse que não existiam. Agora tenho medo de uma coisa que sei que existe.
Na escola, todos falam do que se passou, embora Sofia não tenha querido contar nada. O pai e a mãe preveniram a professora e o director, que reuniram todos os pais.
— Temos de proteger as crianças e de velar pela sua segurança.
O director decidiu que em todas as turmas se falaria do assunto. O episódio atingiu proporções tais que Sofia se sente simultaneamente aliviada e incomodada. Aliviada, porque pensa que já não corre riscos: o homem não deve voltar a aparecer, porque há muita vigilância policial. Sabe que cometeu um erro e que, se voltar a fazer o mesmo, será punido. Incomodada, porque queria esquecer o que se passou e que não se falasse mais daquilo. Talvez tudo pudesse voltar a ser como dantes e ela pudesse ocupar-se dos animais, do Pai Natal, e dos ditados que detesta. Porém, os pais dizem-lhe que é preciso falar do assunto e que não há que ter vergonha…
Uma aula diferente das outras
No último dia de aulas antes das férias de Natal, Sofia foi para a escola sem pasta, acompanhada pela mãe. No último dia, a professora costumava mostrar um vídeo, os alunos levavam jogos e organizava-se um lanche. Este ano seria diferente. O director propôs que a manhã fosse consagrada à partilha de informações sobre “agressões sexuais”.
— É indispensável que aprendam a defender-se de perigos deste tipo. Para isso, terão de os conhecer — explica ele às crianças, um pouco desiludidas por não poderem ir logo brincar…
Na turma de Sofia, a professora decidiu falar-lhes do corpo e inventou uma canção como aquela que os alunos aprendem no Canadá, país que a professora conhece bem, porque viveu lá dois anos. Os alunos adoram as histórias que ela lhes conta sobre o Canadá. A professora escreveu no quadro:
O meu corpo é meu,
Não teu.
Que, dos pés à cabeça,
Respeito te mereça.
Cantou sozinha a primeira vez e depois os alunos acompanharam-na. A letra era fácil de decorar e a melodia era alegre. Em seguida, a professora explicou que cada um é dono do seu corpo, que este é precioso e único, que é necessário dar-lhe atenção e respeitá-lo. É por isso que devemos lavá-lo, calçar-nos bem quando está frio, não andar com sapatos apertados…
— Temos de cuidar bem dele, quando é saudável e quando está doente.
Depois, explica o que significa o respeito por si mesmo e pelo outro.
— Vocês estão a respeitar os adultos quando evitam dar-lhes encontrões, pisá-los, insultá-los. Não os enchem de sumo de tomate, mesmo quando estão zangados com eles, pois não? Os adultos também vos devem respeitar. Normalmente, estão atentos às vossas necessidades e certificam-se de que vocês estão em segurança, para que, um dia, vocês sejam adultos respeitadores das crianças. Todos os seres vivos têm direito ao respeito e todos os seres humanos devem aprender a dizer não aos maus-tratos e a protegerem-se.
Depois de todos os alunos terem compreendido bem a canção e a noção de respeito, a professora fala das agressões sexuais dos adultos sobre as crianças.
Quem são os bons e quem são os maus?
É obvio que a professora começou por falar do que aconteceu com Sofia, que foi obrigada a ver o sexo do homem que lhe apareceu na rua.
— Este homem agrediu a Sofia, porque lhe impôs um comportamento sexual desrespeitoso.
Sofia confirmou:
— É verdade, eu não queria ver, mas não tive alternativa.
A professora tranquilizou-a, dizendo-lhe que reagiu bem ao fugir e ao contar tudo aos pais. Prosseguiu, explicando que certos adultos, atingidos por uma doença que não se vê, não têm uma sexualidade normal, ou seja, não se relacionam sexualmente com outros adultos. Disse aos alunos:
— Essas pessoas consideram que as crianças são objectos e utilizam-nas.
— Mas, se não podemos ver a sua doença, como sabemos que estão doentes? — perguntou um colega de Sofia.
— Esse é que é o problema — respondeu a professora. — Há adultos que são perigosos para as crianças, mas não nos é possível reconhecê-los.
— Mas — continuou uma aluna — de qualquer forma, são sempre pessoas que não conhecemos. A minha mãe disse-me para não falar com desconhecidos nem aceitar bombons na rua.
— Não é bem assim — contrapôs a professora. — Algumas crianças são vítimas de agressões sexuais físicas e o autor é um homem que elas conhecem, melhor ou pior, e do qual não desconfiam. Pode ser um vizinho, um amigo dos pais.
As crianças ficaram muito agitadas. Perguntaram:
— Então, isso quer dizer que devemos ter medo de toda a gente, que todos os adultos podem ser maus?
A professora explicou que não se pode viver a desconfiar de toda a gente.
Há, contudo, algumas regras que devemos seguir, para nossa própria segurança.
— Quando vos propõem uma saída, seja por cinco minutos seja por uma tarde, ou vocês sentem vontade de dizer que sim ou sentem necessidade de recusar. Se quiserem dizer que sim, perguntem-se duas coisas: “Será que o meu pai ou a minha mãe sabem onde vou?” e “Se houver perigo, será que alguém me virá ajudar?” Se responderem “não” a uma destas perguntas, devem dizer, sem se sentirem embaraçados: “Gostava bastante de ir mas, primeiro, tenho de prevenir o meu pai ou a minha mãe.” Se, apesar de todas estas precauções, não se sentirem seguros, não hesitem em telefonar.
João está confuso
Naquele dia, Sofia e os amigos aprenderam muitas coisas que os entristeceram, mesmo que a professora tenha tentado tranquilizá-los, dizendo-lhes o que fazer em determinadas circunstâncias. Felizmente que, dentro de três dias, é Natal, e que a maioria deles se apressa a esquecer tudo e a pensar só nas surpresas que vão encontrar debaixo do pinheiro e nas luzinhas que brilham…
Todos esquecem, menos João. Todas as noites, antes de adormecer, pensa em tudo o que ouviu: “Isto tanto diz respeito às raparigas, como aos rapazes, mesmo que o malfeitor seja um homem.” “Podemos ser agredidos por alguém que conhecemos bem e de quem não desconfiamos.”
João costuma sair todos os domingos à tarde com o seu tio Tiago, porque os pais trabalham ao domingo. O tio não tem filhos e sempre se ocupou de João, que não tem irmãos nem irmãs. Quando João era pequeno, o tio levava-o ao circo e a andar de bicicleta. Agora, vão muitas vezes ao cinema. Uma vez, o tio levou-o ao teatro e João passou uma tarde memorável. Estava em cena uma peça de Molière e os actores vestiam roupas da época. Havia muitas luzes e uma cortina vermelha e enorme. No fim, todos aplaudiram de pé. O tio prometeu voltar a levá-lo, e João espera por esse dia com impaciência. Mas então, porque se sente ele tão inquieto, quando não se colocava nenhumas questões antes da famosa aula sobre o corpo e o respeito? João pergunta-se se deve, ou não, desconfiar do tio, que sempre foi muito gentil com ele. Na rua, costuma pôr o braço nos ombros do sobrinho e, às vezes, dá-lhe um beijo, sem justificação. Será que isso faz parte das “agressões sexuais” de que falou a professora? Será que o tio tem ideias estranhas? Será que tem aquela doença que não se vê?
João já não consegue compreender nada e, nos domingos seguintes, sente-se mal, mas não ousa dizer nada. Pensa e repensa tudo o que ouviu, mas não consegue obter respostas. Depois do que ouviu, tem a sensação de estar a misturar tudo: o sonho e a realidade, os adultos e as crianças, os bons e os maus, o que faz bem e o que faz mal…
Ficar doente não é solução
A partir de então, João, que não consegue falar do que o aflige, fica sempre doente aos domingos. Sabe que, quando está doente, a mãe fica em casa. No primeiro domingo, tem uma crise de fígado. Todos pensam que comeu chocolates a mais no Natal e que um dia em casa o porá bom. No segundo domingo, tem dores de ouvidos. Chamam o médico, que confirma que João tem uma otite e receita-lhe um antibiótico. O tio Tiago vem vê-lo, muito aborrecido.
— Que maçada! Ficas sempre doente aos domingos.
— É menos aborrecido do que faltar às aulas — contrapõe a mãe de João.
No terceiro domingo, a otite, que ficara curada durante a semana, reaparece. O médico está surpreendido.
— É estranho. A acção dos antibióticos costuma durar mais tempo.
Decide prevenir João:
— Se voltares a ter dores de ouvidos, teremos de fazer umas radiografias no hospital, para ver se tens alguma coisa mais grave.
João pergunta-se se uma radiografia aos ouvidos mostrara o que lhe vai na cabeça. “Talvez eles possam ver os meus pensamentos”, aflige-se. João não quer que lhe vejam os pensamentos. Quer guardá-los para si, porque gosta do tio Tiago, apesar de ter ouvido palavras que o incomodaram.
No quarto domingo, dói-lhe a barriga, mas não diz nada. Quando o tio chega e diz que vão ao teatro festejar a cura, João tenta mostrar boa cara.
— Vais ver que vais gostar — anima-o o tio. — É um espectáculo com música, canções e muitas peripécias.
No táxi que os leva ao teatro, João evita sentar-se perto do tio, ao invés do que fazia dantes.
— Mas, o que se passa contigo? Dir-se-ia que tens medo de mim — comenta Tiago, inquieto por ver o sobrinho triste e preocupado.
Então, João dá-se conta de que tem medo da sua própria imaginação e decide falar com o tio, no qual, no fundo, confia.
Uma conversa ao lanche
Depois da peça de teatro, da qual João gostou muito, vão lanchar a casa. Como de costume, o tio parou numa padaria para escolher dois bolos grandes: um merengue para si e um mil folhas para o sobrinho. Instalam-se na cozinha e bebem chocolate quente.
— O que se passa, João? Nem pareces tu. Há já um mês que estás doente e não creio que as otites expliquem tudo.
— Como é que sabes? — pergunta João.
— Porque eu próprio, quando tenho algo que me preocupa, fico cansado e mais vulnerável. E isso faz-me ficar doente com mais frequência.
João tenta, então, dizer ao tio que há adultos que não respeitam as crianças e que, quando crianças de oito anos percebem isso, tudo se torna muito complicado.
— Vocês, os adultos, nem sequer se dão conta — queixa-se o menino. — Ficamos muito inquietos com isso, porque depois achamos que toda a gente é má e temos muito medo porque somos pequenos.
— No entanto, com todos os desenhos animados horríveis que vocês vêem na televisão, já deviam estar habituados! — contesta o tio.
— Não é a mesma coisa. Nós sabemos que um filme ou um desenho animado não são verdadeiros. Por isso os vemos tranquilamente.
O tio Tiago tenta compreender o que tem o sobrinho.
— Achas que não te trato bem? Que te quero mal?
— Não, não, claro que és muito gentil comigo. Mas… às vezes… não sei. A professora contou-nos que mesmo os rapazinhos podem ser…seguidos por homens que fazem coisas estranhas com a “pilinha”. E também disse “O meu corpo é meu, não é teu!” — acrescenta João, corando.
Aos poucos, o enigma vai-se esclarecendo. João explica ao tio o que aconteceu com Sofia. Fala-lhe da aula sobre o corpo e o respeito, e fala-lhe dos seus medos.
— Quando me pões a mão no ombro, eu acho que é normal mas, agora que me disseram aquilo tudo, já não sei bem se é normal.
— Escuta, João. As manifestações de ternura entre um adulto e uma criança são naturais, na maior parte dos casos. Penso que o sabes bem. Mas, se algum dia te sentires pouco à vontade com alguém, um parente ou um amigo, o melhor é falares disso, como fizeste agora.
João fica muito aliviado por ter tido esta conversa.
João e Sofia perceberam tudo muito bem
Passaram-se vários meses desde “o episódio do homem”. É assim que as crianças se referem ao sucedido. Nunca mais voltaram a ver o homem e a vida retomou o seu curso normal. Os miúdos dividem-se entre a escola e o parque. Quando está bom tempo, andam de bicicleta, jogam às escondidas ou à macaca.
João continua a adorar passar os domingos de tarde com o tio e Sofia vai novamente sozinha para a escola. De vez em quando, ainda sente um pouco de medo, mas lembra-se da canção da professora e sente-se logo melhor. Para ter a certeza de que não esquece o refrão, às vezes trauteia-o. Quando não lhe apetece tomar banho ou quando quer muito vestir uma determinada roupa, canta “O meu corpo é meu, não é teu.” É uma forma de aplicar os conselhos da professora.
Um dia, no fim do ano escolar, um jornalista veio à escola para entrevistar os alunos. Recentemente, tinha acontecido algo de semelhante e todos falavam disso: na televisão, na rádio e nos jornais. Ninguém sabia como o jornalista tinha tido conhecimento do “episódio do homem”, mas ele parecia estar ao corrente de tudo e foi logo à sala da turma de Sofia.
— Podes contar-nos a tua aventura e o que aconteceu depois? — perguntou o jornalista a Sofia.
Esta, muito envergonhada, olhou para a professora, que disse:
— Sofia, esta pode ser uma altura para as crianças dizerem não aos adultos, quando se trata de coisa verdadeiramente importantes.
Encorajada por estas palavras, Sofia respondeu:
— Não, não quero contar.
O jornalista, um pouco desconcertado, insistiu:
— Mas então, ninguém quer falar?
— Eu tenho algo a dizer — lançou João. — É bom que sejamos informados para nos podermos defender. Mas, aos oito anos, ainda não somos adultos. Precisamos de sonhar, precisamos de acreditar que os adultos são gentis e felizes. Se soubermos coisas demais, não vamos querer crescer e isso é triste. Tranquilizem-nos. Tenham atenção ao que mostram na televisão, ao que nos contam, às palavras que ouvimos.
Toda a turma aplaudiu João, incluindo a professora e o jornalista, comovidos com tamanha sinceridade. E, para que o jornalista não fosse embora de mãos a abanar, adivinha o que lhe cantaram todos…
Virginie Dumont
J’ai peur du monsieur
Arles, Actes Sud Junior, 1997
Tradução e adaptação