Matilde não tem medo

Pouco passa das oito horas, e Carla, a irmã de Matilde, já dorme a sono solto. A mãe costuma deitá-la cedo e Carla adormece sem fazer grandes birras. Matilde acha que é por ser ainda bebé que ela não se interessa pelo que as pessoas crescidas fazem à noite.

Matilde, essa, não dorme. Em bicos de pés, esgueirou-se para o quarto de banho com o pretexto de ter uma grande vontade de fazer chichi. Mas a verdade é que gosta muito de ver a mãe a pintar-se diante do espelho, a desenhar cuidadosamente a boca com o baton. Matilde acha divertido e também gostava de experimentar.

Mas o pai chega e fá-la ir para a cama:

— Vamos lá, Matilde, rápido, vai deitar-te. A tua mãe e eu vamos chegar atrasados a casa da tia Sabina!

Também ele mudou de roupa para sair, e até fez a barba!

O pai pega em Matilde pela mão e leva-a até à entrada, junto do telefone.

— Percebeste bem? — pergunta-lhe, apontando com o dedo para um papel afixado por cima do telefone. O pai escreveu um número de telefone e ao lado pôs a fotografia da tia Sabina. Assim, Matilde não pode enganar-se. Sabe que aquele é o número de telefone da tia Sabina.

— Confiamos em ti. E lembra-te: se precisares de nós, telefonas para este número e em menos de dez minutos estaremos em casa.

— Está bem — repete Matilde. — Se eu precisar, telefono, e vocês vêm logo a correr. Mas não te preocupes: eu já sou grande e sei cuidar da mana, sobretudo quando ela está a dormir.

Já metida na cama, Matilde ouve a porta de casa fechar-se atrás dos pais. Finalmente partiram! Espreguiça-se de contente e enterra saborosamente a cabeça na almofada. Ao ouvir a respiração regular de Carla, que dorme profundamente no canto oposto do quarto, Matilde espera pelo sono que tarda em chegar. Hesita ainda um instante, mas depois decide levantar-se.

As persianas não estão descidas, mas o quarto está mergulhado na obscuridade. Só um ténue fio de luz passa pela porta entreaberta. Os pais deixaram acesa a luz de vigia da entrada.

Matilde escapa-se para a sala de visitas e vai instalar-se no grande e confortável sofá. Um sofá imenso, onde é muito agradável estender-se sem ser obrigada a partilhá-lo com o pai ou com a mãe.

Liga a televisão. Naquela noite vai poder ver o que quiser!

No ecrã também é noite. De repente, surge um homem em grande plano. Trepa pelo muro de uma casa, agarrando-se à grade que suporta uma videira. Matilde consegue ver-lhe o rosto de perto. Tem uma cara que mete medo, o olhar é mau, um esgar torce-lhe a boca:

— Não perdes pela demora — diz ele entre dentes. — Vou mostrar-te quem sou e prometo que nos vamos divertir!

— Deve ser um homem mau, alguém que está a preparar alguma coisa má — diz Matilde para si. De repente, deixa de ter vontade de ver televisão. Ela prefere não saber como é que este homem se vai dar a conhecer às pessoas que moram naquela casa. E a maneira como diz que se vão divertir não tem graça nenhuma. Não, mais vale ir dormir.

Salta do sofá, desliga a televisão e vai aninhar-se debaixo dos cobertores.

Na cama, Matilde não consegue afastar as imagens da televisão. Tenta adivinhar quem seria o homem. Um ladrão? Não, não quer saber, é melhor não pensar nisso, decide ela, escondendo a cabeça debaixo da almofada.

“Em nossa casa também há uma videira que trepa pela parede acima”, pensa ela por uma última vez. “Mas o pai proibiu-me de me agarrar à grade porque não é lá muito forte.”

Carla vira-se suavemente na cama sem acordar.

“Tem sorte de nunca ter dificuldade de adormecer”, pensa Matilde. “Assim, não lhe vêm à cabeça aqueles pensamentos que nos assaltam quando está tudo escuro e silencioso, e não nos deixam dormir.”

De repente, Matilde sobressalta-se. Acabou de ouvir um barulho de folhas, lá fora, mesmo junto à parede da casa!

Levanta-se devagarinho, senta-se na cama e põe-se à escuta.

Depois começa a rir baixinho. Enganou-se, era só o vento. Além disso, ouve-se o ribombar de uma trovoada a ralhar algures, muito longe. Não há que ter medo. O homem que viu trepar pela parede coberta de videira só existe na televisão.

E como ela desligou a televisão…

Mais sossegada, deita-se na cama, muito quentinha.

“Os moradores daquela casa, a da televisão, se calhar não tinham um cão”, pensou. “Porque se tivessem um, ele tinha ladrado. E quando um cão ladra, os ladrões ficam com medo e fogem a correr.”

“Por que é que aquelas pessoas não tinham um cão? E nós, por que é que não temos um cão?”, interroga-se Matilde. “Eu gostava muito de ter um. Um cão meigo e brincalhão, que me protegesse. Se tivesse um, passava a dormir lindamente!”

Matilde fecha os olhos e imagina como seria o seu cão.

Havia de ter o pêlo castanho, ondulado, e os olhos cor de avelã. De cada vez que a visse, viria a correr aos latidos. Lambia-lhe a mão com a língua rosada.

De repente, uma luz branca rasga a noite, seguida de um trovão.

Matilde assusta-se e senta-se na cama.

O clarão não durou mais do que uma fracção de segundo, mas pareceu-lhe ver um rosto do outro lado do vidro.

Um rosto parecido com o do homem da televisão. Tudo volta a ficar sombrio e silencioso.

No escuro, Matilde tenta raciocinar:
“És uma autêntica galinha, cheia de medo do vento e do barulho dos trovões. Chega!”, diz para si. “Pára de imaginar tolices!”

Como está com formigueiros nas pernas, atravessa o quarto para ter a certeza de que Carla continua a dormir.

Carla dorme serenamente, como se nada acontecesse. A calma da irmãzinha dá uma ideia a Matilde, uma ideia que a faz rir. Quando Carla tem medo, faz-se rodear dos seus peluches preferidos para se acalmar. Mas afinal por que não há-de ela fazer o mesmo?

No armário de Carla, Matilde procura às apalpadelas os seus dois cães pretos e o tigre, aquele que tem uma pata estragada.

Matilde vai até à janela com os três animais debaixo do braço. A trovoada foi ralhar para outro lado.

Redonda como uma bola, a lua brilha no céu. Matilde abre a janela e esconde o tigre debaixo da folhagem. Daquele sítio, ele pode guardar a casa. Com a pata partida, é incapaz de correr atrás dos maus.

Em seguida, Matilde atira os dois cães o mais longe possível para o jardim.

— Tomai bem conta da Carla! — recomenda-lhes Matilde.

Um dos cães aterra num canteiro de flores, o outro desaparece no escuro.

“Está muito bem assim”, pensa. “Nada melhor do que um bom esconderijo para apanhar os maus.”

Matilde torna a fechar a janela com cuidado. Já não era sem tempo, pois o temporal volta a atacar. Um relâmpago rasga o céu escuro aos ziguezagues, seguido de um grande trovão.

Metida na cama, Matilde imagina o homem da televisão a escalar a cerca que rodeia a casa. Depois, vê-o avançar em direcção ao caminho que leva à porta da entrada. Ele nem imagina que no escuro estão dois cães à espreita, prontos para defender Carla!

De repente, Matilde é assaltada por uma terrível dúvida. “Será que o homem tem medo de cães? E se os mata com a faca, ou se lhes prende as patas com uma corda, ou lhes ata um lenço à volta do focinho”, aflige-se ela, “quem é que vai defender a Carla?”

Num ápice, Matilde salta da cama e lança-se numa corrida para o quarto dos pais. Sabe que em cima da cómoda está guardada a colecção de soldadinhos de chumbo do pai. São soldados de chumbo que o pai dele lhe oferecera. Matilde não tem autorização de brincar com eles, nem sequer de lhes tocar. Mas agora já não é um jogo, é um assunto sério!

Matilde pega em tantos soldados quantos lhe cabem nas mãos e volta para o quarto. Coloca-os uns atrás dos outros, no parapeito da janela. Na primeira fila, alinha os cavaleiros. Sob a luz fria da lua não parecem muito confiantes. Os rostos parecem mais severos e os uniformes menos coloridos do que em pleno dia. Atrás dos cavaleiros, Matilde perfila os soldados com os canhões, e, atrás, os que empunham espadas e espingardas.

Passa revista ao exército e diz baixinho:

— O mau da televisão já pode vir. Vai ser bem recebido!

E volta para a cama, contente por ter pensado em tudo.

A tempestade voltou, com relâmpagos e trovões. Está cada vez mais perto e cada vez mais forte. Matilde tem vontade de chorar, mas repete, de punhos cerrados, que já é grande, que é a irmã crescida de Carla, que, essa sim, é ainda um pouco bebé.

Matilde torna a sentar-se na cama. Do outro lado do quarto, Carla continua a dormir calmamente. Que sorte tem em dormir assim! Será que ela tem frio?

Matilde atravessa o quarto em pezinhos de lã e, com cuidado, empurra a irmã contra a parede para fazer um lugar para ela. Depois deita-se encostada a Carla e abraça-a. Para a aquecer.

Um raio torna a iluminar o céu.

Desta vez Matilde não vê cara nenhuma à janela mas pensa que o homem deve ter retirado a cabeça a tempo para não ser visto.

Outro raio! Desta vez Matilde tem a certeza de que os cães ladraram, de que ouviu o tigre a rugir e a arranhar os ladrilhos, de que os soldados de chumbo gritaram todos “Ao ataque!”.

Chega-se mais para junto de Carla e aperta-a contra si, cada vez com mais força. Abana-a um bocadinho. Carla vira a cabeça e abre os olhos:

— Matilde — murmura meio ensonada. Sorri à irmã, volta a fechar os olhos e adormece com um suspiro de satisfação.

— Foi a trovoada que te acordou — sussurra Matilde, que abana Carla com um pouco mais de força.

Carla acorda completamente.

— Matilde — balbucia. — Matilde — continua mais alto e com mais força — tenho medo da trovoada; quero a mamã!

— Bem sabes que o papá e a mamã foram passar o serão a casa da tia Sabina.

— Mas eu quero vê-los — choraminga Carla. — O papá disse para telefonarmos se precisarmos deles.

Puxando-a pela mão, Matilde leva-a até junto do telefone.

Carla segura o papel com o telefone e a fotografia da tia Sabina, para que Matilde veja bem. Matilde marca, número a número, tecla a tecla, exactamente como treinou com os pais.

Primeiro, só ouve o sinal de chamar, depois alguém atende.
Matilde reconhece a voz da mãe.

— Estou? — inquieta-se a mãe. — És tu, Matilde? O que é que aconteceu?

Aliviada, Matilde explica:

— Mamã, aqui há trovoada. Há raios e trovões muito fortes que acordaram a Carla, e agora ela está a chorar. Está com muito medo.

— Dentro de poucos minutos estamos aí. Até lá, deita-te ao lado da tua irmã e abraça-a com força para a sossegares, querida. Tu não tens medo da trovoada. És uma menina crescida!

— Está bem, não te preocupes, que eu vou tratar da Carla — assegura Matilde antes de desligar.

Matilde leva Carla para o quarto, com cuidado.

Deita-se ao lado da irmã e abraça-a com carinho, sussurrando-lhe baixinho ao ouvido que tem de adormecer depressa. E que não deve ter medo da trovoada!

Mirjam Pressler
Mathilde n’a pas peur de l’orage
Actes Sud Junior, 1998
Tradução e adaptação

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