A sombra do meu pai
Há muitos, muitos anos, milhares deles mesmo, acontecia que os pais que já não se amavam se separavam. Às vezes, era a mãe que queria ir embora, outras vezes era o pai. Às vezes, eram os dois. Tinham decidido que a relação já não funcionava. Sabes bem que quando as pessoas estão sempre a discutir acabam por perder a voz, a audição, o sorriso. E a felicidade. Quando isso acontece, o melhor é ir embora. Isso também acontecia com os elefantes, as pombas, os leões, os hipopótamos, os macacos brancos do Gabão, as girafas cheias de manchas, e com todos os animais da Arca de Noé. Mas, ontem como hoje, para os filhos nascidos destas uniões, o problema é sempre o mesmo: sentem-se divididos entre o pai e a mãe e querem continuar a ver os dois.
Júlio estava muito preocupado. Queria ficar com a mãe, mas não queria que o pai desaparecesse. Então, foi falar com o Grande Mágico de caracóis pretos. O Grande Mágico ouviu-o com muita atenção, enquanto cruzava os deditos tortos sobre a barriga gorducha. Pensaram ambos nas soluções possíveis: transformar o pai em estátua de sal para que não voltasse a mexer-se; em pomba para fazer as pazes; em sol para brilhar mesmo de muito longe. Mas Júlio queria o pai com ele e isso não lhe interessava.
− Só vejo uma solução − anunciou o Mágico. − Partir o teu pai em dois. Ele vai embora, mas a sua sombra fica. Fica contigo.
E foi assim que Júlio começou a viver com a sombra do pai. Só ele a podia ver. Quando alguém batia à porta do quarto, a sombra evaporava-se. Quando o menino regressava da escola, fechava a porta do quarto e a sombra aparecia projectada na parede. Era muito fina e delicada, mas era o seu pai. Júlio fazia de conta que a sua vida não tinha mudado. Quando vinha da aula de judo à quarta-feira, dava um beijo à mãe e ia para o quarto. Uma vez lá, tentava saltar para os braços do pai. Tenta beijar uma sombra e verás que é impossível. Este tipo de vida tinha algumas vantagens: a sombra nunca lhe dizia para lavar as mãos, limpar as unhas ou descalçar-se antes de saltar para cima da cama.
Mas, quanto mais os dias passavam, mais a sombra se tornava esguia e transparente, como uma recordação que se esvai. Júlio tinha de esticar as orelhas para a ouvir e perguntava-se onde estava o pai que ele tinha conhecido. Para fazer com que a sombra reagisse, chegava a dizer-lhe:
− Hoje, tive dois em dez no meu ditado.
Mas a sombra só dizia:
− Bom…bom…
Numa outra altura, Júlio disse:
− Tive um zero em cálculo. E vou tentar ter o dobro.
Ao que a sombra respondeu:
− Ora, ora.
No dia seguinte, fingia ter esbofeteado a professora:
− Esbofeteei a minha professora. Vou ser expulso da escola.
A sombra vacilava, tremia, mas nunca se enervava.
Quando Júlio lhe perguntava alguma coisa, também não obtinha resposta.
− És feliz com a tua nova família?
A sombra tornava-se tão fluída que Júlio tinha de semicerrar os olhos para não a perder de vista. E, quando a sombra lhe lia uma história à noite, sussurrava tanto que o menino nem a ouvia. Isto não era o seu pai!
Uma noite, Júlio atirou um par de sapatilhas e um banco contra a sombra. Depois foi visitar o Grande Mágico.
− Esta sombra não é o meu pai. É uma sombra fugidia e medrosa. Não a quero. Quero o meu pai, forte como sempre foi.
− Ora, ora − disse o Grande Mágico dos deditos tortos.
Reflectiram muito, desenharam muitos esquemas no quadro preto da parede, recapitularam todas as soluções possíveis. Como fazer para que uma criança continue a viver com os dois pais, quando os pais já não vivem juntos? Decidiu-se que o melhor era que ela partilhasse o tempo com os dois: um fim-de-semana com um, um fim-de-semana com o outro, metade das férias com cada um.
É assim que funciona com todos os pais, para que possam ver os seus filhos. Júlio ficou contente. Mandou a sombra embora e pôde sentir de novo a força dos braços do pai, cheirar o seu perfume, ouvir a sua voz grossa, roçar-se na pele que fazia cócegas, e escutar uma história antes de adormecer. Mesmo que não pudesse ter isto tudo todos os dias, era esta a melhor solução.
*
Tradicionalmente, a psicanálise sempre considerou o pai como um tampão entre a mãe e a criança. O pai separa a criança da mãe, integra-a no tecido social, inicia-a na Lei, introdu-la no discurso. Como se o quotidiano tivesse uma importância diminuta. Como se os beijos e os mimos do pai não tivessem importância.
Hoje, porém, a tendência é para sublinhar o papel essencial do contacto físico entre o pai e o filho, tanto mais que a criança percebe, desde os quatro meses, a diferença entre a festinha feita pelo pai e a festinha feita pela mãe. O pai brinca de maneira diferente, com mais vivacidade, mais dinamismo. Não vira a criança para si, como faz a mãe, mas vira-a para o exterior. A criança precisa de ambas as atitudes.
Por que razão, sabendo isto, alguns pais se demitem tão facilmente do seu papel de pais? Talvez tenham sido educados por pais ausentes também, e repetem a história com os seus filhos. Talvez porque – socialmente – é suposto que fiquem até tarde no escritório, ou porque a presença da mãe é demasiado forte junto da criança.
Se o pai se ausentou de casa, é necessário compensar a sua ausência com uma presença paternal: um avô ou um padrinho podem ajudar a criança no seu processo de identificação. Fale do pai ao seu filho. Fale-lhe das brincadeiras que faziam, da cumplicidade que tinham. Incentive-os a comunicar por carta, por correio electrónico, por fax…
Se o pai vive em casa, mas está sempre demasiado ocupado com o trabalho, convide-o a modificar os horários, sobretudo quando as crianças começam a ir para a escola. Sair mais cedo de manhã e regressar mais cedo à tarde pode ser uma hipótese… Ou ao contrário. Seria bom que o pai fizesse uma surpresa ao filho, indo buscá-lo à saída da escola, pelo menos uma vez por semana.
Fale com o seu filho.
Diga-lhe que os adultos têm trabalhos importantes a fazer, que querem muitas vezes ganhar mais dinheiro para poderem oferecer coisas melhores aos filhos e assegurar o seu futuro… Mas diga-lhe, também, que os filhos têm todo o direito de verem os pais e que um telefonema nem sempre é suficiente.
“Se tens muitas saudades do teu pai, podes dizê-lo através de um desenho ou de uma carta… Os pais não adivinham tudo!”